As alturas.

Reinava um silêncio quase que absoluto na sala, todos estavam apreensivos por ter que enfrentar aquela aula, a fama do Mestre não era das melhores, somente uma minoria angustiou uma experiência de aula com ele, no fundo sabiam que teriam que tolerar mais um semestre. Não tardou para que as manifestações começassem.

- Alguém pode me explicar de forma detalhada o porque temos que nos submeter a este tipo de situação?
- Calma! Você esta se alterando novamente, vamos saber o motivo quando começar. – Ponderou seu colega ao lado sem se voltar a ele. Estava cansado daquelas manifestações, por mais que tentasse não conseguia se render a tais determinações.
- Calma? Que calma? Eu sou um Sabiá você um Pintassilgo, não temos que ter aula com o Urubu, eles forçaram esta disciplina para nós, o ele que ele pode nos ensinar? A como destrinchar uma carcaça?
- A Dona Coruja acha que temos que ter diversos representantes do saber, quem você acha que é, para julgar o que é bom ou ruim para nós? Sou um Rouxinol que veio de longe e não vejo problema algum, o Pintassilgo tem razão, tenha calma, espere para ver.
- Não estou julgando ninguém. Quero uma simples explicação se a Dona Coruja determinou, é porque existe uma razão e é isso que quero saber, talvez aqueles que não sabem cantar se divirtam com esta aula, para eles é indiferente, não vão cantar mesmo.
- Nossa!!! Como você esta ácido o que foi comeu quando acordou? O Rouxinol, explicou que devemos ter uma boa formação e se determinaram esta disciplina é porque é necessária.

Não seria fácil para eles no fundo todos sabiam que o Sabiá tinha razão, com exceção do Pica-Pau, a maioria tinha a musica como meio de vida, se dedicavam a ela, e quando procuraram aquele local era para se aperfeiçoarem.

O sinal. A qualquer momento iria começar a aula. Um minuto, cinco minutos, dez minutos, estava atrasado, mal pressagio, ninguém se atrasa, as aulas sempre começam no horário, mas de repente surge uma figura imponente, o sol desaparece, surge uma longa sombra, arqueado, olhos profundos habituados a localizar a presa, anda de forma cambaleante, segura uma parafernália de coisas sem valor. Como se estivesse sozinho, começa a balbuciar:

- Quando comecei a voar o que importava era as alturas, onde o silencio reina e propicia a visão do todo. O grande mestre das alturas já identificava esta magnitude do poder imanente de voar nas alturas. O Grande Condor-da-Califórnia, ao qual tive o privilégio de ser o único Urubu como discípulo, complementou o meu vasto saber sobre as correntes que nos possibilitam a alçar vôos alem do imaginável. Nada mais importa, somente as alturas se justificam por si. – Fala só para si, olhava para o alto, não percebeu o tédio que estava causando, se achava o máximo, não poderia haver nada mais nobre que dominar as alturas, e continuou. – Detectar e explorar as correntes áreas, é, e deve sempre ser o objetivo daqueles que tem asas.
Lembro-me de quando contornei todo o nosso vasto território como único representante capaz de assimilar todo o conhecimento pelo Grande Condor-da-Califórnia, da chegada vitoriosa e aclamada pelos Abutres-do-velho-mundo. Que apoteose. Montei um seminário e exigi a presença de todos que compartilhavam a importância e magnitude das alturas, os desfiladeiros, os precipícios e os vales. Confesso a vocês que estou um tanto quanto arrependido desta iniciativa, pois sou aclamado a todo instante para proferir o meu inesgotável saber e isto tem me privado de outras pesquisas que estou certo será outra revolução no saber. Principalmente nas técnicas do “mergulho aéreo vertical em elipse”, quando estive com o Grande Abutre-Real em Torgos, percebi que nem todo o ensinamento para esta nova técnica de mergulho esta divulgada, creio inclusive que levaremos anos e mais anos até que se tenha uma idéia verdadeira da esplendorosa majestade desta arte do mergulho.

Não era mais possível tolerar aquela situação o Sabiá estava pronto para manifestar-se, sentia falta de ar, até que percebeu o momento de interferir naquele discurso sem propósito, o Urubu dera uma pausa para se refazer do que ele achava uma definição perfeita sobre o vôo, mas quando ia se pronunciar, uma frase surgiu do fundo, de forma contundente, firme sem margens para equívocos, foi direto.

- Sr. Urubu! Estas definições que nos traz, não seria em ultima analise uma técnica para a formação de um bom predador que necessita das alturas para que possa abranger o maior campo de sua caçada? Em que este conhecimento nos aprimora no canto?

O Sabiá não acreditou no que estava ouvindo, durante todo o tempo pensou estar sozinho naquela classe, pensava que somente ele percebia o desproposito daquele tipo tema. Será que tinha ouvido direito, será que não estava de fato sozinho? E agora o que faria? Não pensava em uma confrontação tão explicita, alias percebia que se não fosse esta interferência poderia ter se dado mal. Somente agora pode perceber a nobreza do Uirapuru, ele também não aceitava esta aula, ficou em silencio, enquanto não tivesse certeza do teor da matéria não iria se manifestar, optou para o campo da troca de idéias, queria no fundo atestar se suas impressões estavam certas. Somente colocando-se poderia constar se a aula teria ou não sentido para aqueles que queriam aprimorar-se. O Urubu foi pego de surpresa.

- Somente no curso de minhas aulas, poderão verificar que existe uma arte implícita no alçar vôo, somente aqueles que não percebem ou experienciaram a magnitude das alturas é que tem dificuldade de acompanhar a riqueza da imensidão do horizonte, do exercício de sentir o ar rarefeito que promove o desenvolvimento do pulmão, com que certamente e logicamente melhora o canto.

O Sabiá não se conteve:

- Psiu, Pintassilgo! Ei!
- Que foi? Fique quieto!
- Meu! Você entendeu alguma coisa! O cara ta viajando!
- Sabiá! Fica quieto, pelo jeito não é só você que esta a fim de detonar esta aula.
- Eu não quero detonar porcaria nenhuma. Eu só não…
- Quieto, se não vai sobrar para nós, aproveita e presta atenção, certamente você vai apreender alguma coisa.

Era notório que o Urubu estava irritado, mas como se sentisse à vontade no confronto, resolveu mudar o curso da aula, decidiu de forma contundente a atacar o Grande Curió.

- Muitos acham que o Grande Curió tem o domínio das alturas, mas não passa de um pequeno pássaro que se restringe a cantar de forma empertigada, não vê a importância das alturas somente o canto é a sua limitação.

O Pintassilgo adivinhando o pensamento do Sabia, voltou-se para ele, encontraram-se no olhar o Pintassilgo foi mais rápido.

- Não quero ouvir nada. Entendeu?
- Entendi o que? Que você não quer ouvir nada ou que eu não entendi o que este mentecapto falou?

O Pintassilgo rendeu-se.

- Você não existe. Eu também não entendi nada. Ele esta atacando do nada o Grande Curió. Este cara tem problemas?
- É isso que estou tentando por na sua cabeça! – O Sabiá mal podia se conter, tamanha a sua fúria.
- Calma! Senão o Urubu nos ouve…
- Calma nada; estou ficando cheio desta sua passividade… - Foi nesse momento que de forma tão inesperada como a anterior, Uirapuru voltou a se manifestar. O silêncio reinou na sala, ele era o único, preencheu toda a classe, percebeu-se que naquele momento que ele era o mais alto representante daqueles que não tinham coragem de afrontar o Urubu, ficou-se evidenciado o insulto quando atacou o Grande Curió.
- O Sr. quando afirma que o Grande Curió é voltado somente para o canto, é uma posição sua ou do Condor-da-Califórnia? Pois, até onde eu sei, o Grande Curió alem de cantar alça o seu vôo acima dos Andes.
- Quando tiver que se manifestar em minha aula tem que pedir permissão e somente apos minha deliberação é que será permitida qualquer tipo de pergunta.
- Por favor, queira me desculpar. – O Uirapuru se colou de forma respeitosa, olhava para o Urubu como um aluno deve olhar a um Mestre, estava arrependido de não ter solicitado a permissão, e não se contendo:
- Perdão, creio que não fui respeitoso.

Pronto. Foi o suficiente para a classe perceber que não haveria qualquer possibilidade de troca de conhecimento, não seriam suscitados à alegria, não poderiam vibrar, ou seja não haveria canto. O Urubu percebeu sua desvantagem, ele exagerou, estava ali no contexto do canto e tinha que resgatar de alguma forma.

- Sou eu que te peço desculpas, deveria ter mencionado as regras de comportamento em minha aula. Antes de pronunciar algo: peça permissão. – Não adiantou nada o silencio na classe era sepulcral. E continuou como se nada tivesse acontecido:
- O Grande Curió não conhece as alturas vive somente do canto.

Como se uma nuvem que estava encobrindo o céu passasse, o sinal tocou finalizando aquela tenebrosa aula. Quase todos saíram imediatamente. Apenas o Rouxinol ficou, contemplava a serenidade do Uirapuru guardando suas coisas, tinha certeza que ele não mais o veria naquela sala de aula. Aproximou-se timidamente, querendo anima-lo.

- Gostei de suas observações, mas não deveria se colocar tão contrariamente às considerações do Urubu.
- Eu não estou contrário a elas, o que me incomoda e a forma como ele as coloca.
- Mas é o jeito dele.
- Lembra do João-de-Barro quando nos apresentou como construía sua casa, que utilizava a proporcionalidade representada pelo numero 1,618….como “ o numero áureo”, a chave matemática da harmonia universal, o regulador das espirais da natureza, do desenho de sua casa, das folhas, das ramificações de arbustos e arvores, das conchas marítimas, ou seja de tudo aquilo que estamos convivendo a todo instante?
- Lembro, o Sabiá disse que não via sentido em apreender matemática.
- A matemática é uma das formas de percebermos a harmonia na criação. A figura do Tetráktis; o Um (.), depois o Dois (..), Três (…) e finalmente o 4 (….), sobrepondo todos os pontos aos quais os números representam forma o Triangulo, e a somatória dos pontos é Dez o Numero Perfeito. Suas proporções entre outras, revelam os intervalos das “oitavas musicais”.
O João-de-Barro mostrou que ha musicalidade em tudo. É nisto que acredito, estou sempre no cume das copas em noites sem o luar e ouço o canto das estrelas, o céu coberto com pontos cintilantes que me arrebatam o peito. Sinto dificuldade de respirar tamanha é a beleza e a sensação do Todo que invade meu espírito.
- Fazemos parte de algo maior do que temos condição de compreender.
- Isso Rouxinol, é exatamente isso!
- Também fico a noite no alto das copas, e imagino se pode existir algo superior a esta beleza toda.
- O Bem esta acima de tudo. – Nesta hora o Uirapuru inclina sua cabeça para baixo como se algo pesasse em sua mente.
- O que foi Uirapuru?
- Nada.
- Por favor, não me deixe sem saber o que se passa com você.
- Todos os Mestres deveriam passar seu conhecimento seja ele qual for permeado de Amor, é assim que o Bem se manifesta na criação. Nós estamos aqui para nos aperfeiçoarmos, a vibração e harmonia são fundamentais para nossa constituição.
- Creio que você esta no Caminho, sei que encontrará nesta sua aflição um ponto em que possa se apoiar. – O Rouxinol não tinha o que dizer, mas não queria deixa-lo sem um incentivo. Despediu-se e partiu.

Perto de onde eles estavam, Cravina estava observando-os, posicionou de forma discreta perto dos dois, não deixou de ouvir o debate de seus amigos. Antes que o Uirapuru saísse ela se aproximou e com sua suavidade peculiar exclamou:

- Eu sei o que você vai fazer!
- Você sabe Cravina?
- Sei. Eu vou continuar assistindo as aulas, que o Urubu não é agradável eu já sabia, ele se acha o máximo. Mas tenho interesse em tudo que trata sobre alturas.
- Eu também.
- Então?
- Eu não gostaria de discutir isto com você. Não acho justo, você esta interessada nesta aula e minha posição poderá influencia-la, não quero que isto aconteça.
- Mas…
- Olha. Você não deve tomar o que sinto, somos amigos, já passamos por diversas situações aqui, mas você deve seguir o seu coração e não o meu.
- Isso não é justo você estava argumentando com o Rouxinol e comigo esta se esquivando.
- O Rouxinol não estava buscando motivos para deixar a aula, você esta.
- Eu deixar a aula? Que absurdo!
- Pronto. Agora vamos começar a discussão.
- Desculpe.
- Não se desculpe. Vamos deixar as coisas como estão.


No fundo ela sabia que as aulas não seriam a mesma, o grupo formava uma unidade. Bastava um vibrar para que todos começassem, sem o Uirapuru corria-se o risco da aula se tornar um tédio, onde o Mestre fazia de conta que ensinava e os alunos de que apreendiam. Mas ela não iria desistir facilmente, antes que ele pudesse sair, proferiu:

- E se fosse a Águia e não o Urubu?
- O que é que tem?
- Se em vez do Urubu tivéssemos aula com a Águia sobre as alturas e não o Urubu.
- Seria ótimo, ela alem de conhecer as alturas, canta. Mas não é o caso.
- Você faz uma idéia do porque? – Ela não resistia provocaria-o até o limite.
- Por que há política, por que nos bastidores tem mais coisa do que possa supor a nossa vã cantoria.
- E você não vai fazer nada?
- Vou. Vou para minha arvore.

Ela não ia deixar as coisa assim, Uirapuru não teve tempo de movimentar-se, quando ela disparou:

- É mais fácil fugir do que enfrentar e transformar as situações constrangedoras em aprimoramento. Você não esta pensando em seus colegas que terão o tédio desta aula. Poderia pelo menos ficar e provocar a atenção daqueles que decidem em ter Mestres como este Urubu. Mas não, você prefere ficar no alto da copas contemplando as estrelas, enquanto aqui embaixo temos que nos defender sozinhos.


by José Rubens Salles Toledo

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