Dilema do patinho feio
O texto que estou apresentando é de uma amiga, que tive a oportunidade de conhecer em 25 de abril/22011, no caminhar desta amizade descobrimos a Filosofia da Vida!
Boa leitura:
de Ana C. Y. Arantes: O dilema do patinho feio.
Boa leitura:
de Ana C. Y. Arantes: O dilema do patinho feio.
Todos nós conhecemos a
história do patinho feio: nasceu disforme de um ninho de pata; comparado aos
outros patinhos era considerado feio, desajeitado; por isso era rejeitado por
seus “irmãos”, e até mesmo por sua mãe; foi expulso do ninho e sua saga foi trilhada
em busca de um lugar ao qual podia chamar de “seu”. Durante sua busca, foi
acossado por caçadores e perseguido por cães, ridicularizado por gato e galinha
que lhe colocavam a existência em termos de utilidade (quem você é passa a denotar para que você é útil). Fugindo assustado para o
lago, quase morreu de frio quando este congelou, sendo salvo por um fazendeiro
que o acolheu em sua casa. Mas como não estava acostumado com a bondade alheia,
mostrou-se desajeitado, caindo no balde de leite, derrubando farinha por toda a
casa e lambuzando-se com a manteiga. Assustado mais com seu próprio
comportamento do que com a reação dos outros, e tomado pela expectativa de ser
mais uma vez recriminado e expulso, o patinho (que já sejulgava feio), fugiu mais uma vez. Já estava se acostumando
à vida no exílio, à solidão, à tristeza (que mal poderia causar sofrimento
maior a quem já está acostumado com tudo isso e não conhece nada diferente a
qual comparar?). Decidiu voltar ao lago congelado para morrer, mas
surpreendentemente resistiu – Ou será que teria morrido e renascido?
Ao fim do
inverno, do tempo sombrio da quase-morte, quando tudo que podia esperar era a
morte certa, veio o raiar de um novo dia: a primavera o envolveu lentamente com
cores ternas, os passarinhos sonorizavam a vida nos céus, as primeiras flores
começavam a alegrar a paisagem até então inóspita das árvores. O clima começava
a tornar-se mais ameno, e o patinho (que a esta altura tinhacerteza de
sua feiúra), preparava-se para ter que novamente fugir, pois desde que nascera
não conheceu o acolhimento amoroso dos outros. Mas ainda muito fragilizado, com
as patinhas ainda congeladas do frio do lago, com as penas duras da capa pesada
e gélida de orvalho que o envolvia, enfraquecido com a escassez de comida, ele
não tinha forças para fugir. Resolveu permanecer ali: não por coragem, nem por
rebeldia consciente, mas apenas por escolher se entregar à sua sorte tão pobre
de sorte. Foi então que, olhando ao alto, viu um lindo bando de pássaros se
aproximar. Eles sobrevoavam seu lago e aproximavam-se com tal rapidez e leveza
que o patinho – encantado com a beleza destas aves – mal teve tempo de se
mexer. Como que paralisado pela beleza que encontrava naquelas criaturas, ele
permaneceu. Rápido era apenas seu pensamento de que seria escorraçado, mais uma
vez. Mas já que tinha sido expulso e maltratado por tantas criaturas, a idéia
de sê-lo, agora por criaturas tão belas, não lhe soou de todo ruim… Quando o
bando pousou e foi se aproximando dele, o patinho tremeu: prendeu a respiração,
abriu bem seus olhinhos e aguardou seu fim… Qual sua surpresa quando a
aproximação do bando não foi agressiva! Eles o rodeavam, nadando ao seu redor!
Alguns encostavam levemente o bico no seu, como se quisessem cumprimentar.
Outros abriam asas, espreguiçando do longo vôo, ficando tão à vontade que não
parecia que se aprumavam para lhe fazer mal… Confuso com esta nova reação, não
sabendo como interpretar o novo gesto de acolhida, o patinho baixou o olhar.
Foi, então, que viu algo na água: um ser tão lindo e tão parecido com aquelas
criaturas que estavam à sua volta! Estaria ele mergulhando? Não, não era um
estranho – ele percebeu -, era seu reflexo na água, era ele mesmo… Será que ele
era um deles? Será que teria achado seu lugar de pertencimento, encontrado sua
identidade justamente quando pensava em desistir? Será que estava tão fatigado
de sua jornada que adormecera, e estava fantasiando tudo aquilo? Será que sua
impressão de acolhida e de receptividade era real? Ou seria substituída, quando
ele menos esperasse, pela tão conhecida reação de estranhamento e repúdio? Para
quem só conhecida a traição, a rejeição e o abandono, como poderia compreender
a receptividade, o acolhimento e a ternura?
Infelizmente
não sabemos como a história se segue. O “viveram felizes para sempre” termina
aqui, com a primeira consciência da identidade do patinho (agora um cisne) feio
(agora lindo). Dizem que era um cisne negro, o mais lindo de todos os cisnes
brancos que o rodeavam como se fossem seu próprio bando. Talvez ele fosse negro
porque conhecia o lado sombrio de sua identidade, muito antes de conhecer o
modo de nomear tal identidade. Será que ele carregava ainda o estigma de
patinho feio dentro de si, e isso lhe sombreava a alma? Será que a lembrança de
quem se julgava ser não lhe afligia às vezes, despertando-lhe uma agressividade
defensiva às menores associações que pudessem ser feitas dos atos alheios com
relação à sua vida pregressa? Ou será que, por ter conhecido a dor, tornara-se
incapaz de fazê-la sentir no outro? Após sua quase morte (da morte simbólica do
Eu: patinho-feio) o cisne passou a ter consciência de seu Eu: belo-cisne? São
questões que o “viveram felizes para sempre” das fábulas escondem, e que talvez
só possam ser respondidas por nós mesmos – por nossas reações individuais aos
momentos após as pequenas-mortes.
Mas a questão da identidade
que sobrevêm a esta tomada de consciência de quem se é verdadeiramente, ou da
descoberta do lugar de pertencimento, é posterior. Para chegar a ela o patinho
feio teve que sobreviver ao dilema da vida contrariada. Tal sobrevivência
heróica parece misteriosa, porque não podemos saber com certeza como ela se
processou. De onde o patinho tirou forças para resistir às sucessivas
frustrações às quais foi exposto desde o início de sua vida? Será que ele resistiu
bravamente às intempéries através de uma atitude consciente e determinada,
lutando contra todos aqueles que lhe diziam e lhe mostravam que ele era nada?
Ou será que ele apenas reagiu às agressões do único modo que conhecia (como não
conhecia sua força, não podia lutar, mas somente fugir)? Em que podia se basear
sua esperança para continuar a sobreviver? – em uma promessa de
que um dia poderia viver?; em uma desesperança que o impedia de
vislumbrar um fim feliz e que o estimulava a fugir para um além do mundo
conhecido?
Esperança
parece aqui caminhar ao lado da desesperança. E assim não ocorre na maior parte
das vezes? Quem consegue permanecer sereno em meio às tempestades emocionais?
Quem tem a serenidade búdica de se colocar no olho do ciclone e apenas admirar
o caos à sua volta, sem dele participar? Aconselhamos o autocontrole, mas
dificilmente conseguimos praticá-lo. A fé parece existir apenas na calmaria,
mas não é no desespero que ela se fortalece? O desespero de nada saber, de nada
esperar, é vital para que a confiança no mundo conhecido dê lugar à confiança
nos desígnios desconhecidos. É na sombra que podemos ver a luz, pois imersos na
luz, ficamos cegos. Na cegueira da caverna conhecida não há dilemas, tudo
encontra resposta, uma resposta serena porque fria, distante, cortante para
aqueles que não se encontram no mesmo estado. Todos querem ficar o máximo
possível neste estado de acolhimento das luzes de tudo saber: sem questões, sem
inquietações, sem projetos distintos e enviesados daqueles que já foram
tracejados. Preferimos a quietude dos achismos que damos a nós mesmos, queremos
nos convencer de sua verdade, irrefutabilidade, inefabilidade. Imersos na luz
ofuscante, ficamos deslumbrados com nossas próprias certezas tão certas e
confortantes. Deslumbramento, a retirada de nossa própria luz, frente uma luz
que não nos pertence, mas que nos cega: a luz das certezas, da obviedade das
metas, dos planos tão planos porque meticulosamente planejados… Chatos!
É
a angústia que leva ao descobrimento inebriante; é a tensão do caos que
possibilita a centelha da nova estrela; é em meio às sombras que vemos luz. Só
podemos nos inventar se, em algum momento de nossa jornada, nossos projetos se
nos mostrarem falhos, vãos ou inóspitos. É a decepção que dá origem a um desvio da vida, às novas
vivências. É o inusitado que nos põe frente à novidade, possibilitando o
maravilhamento de descobrir uma nova identidade. Sem as pequenas mortes, não há
nascimento do novo Eu. Este processo não é novo (nova é a expectativa
positivista que temos de um progresso ordenado e constante de nossas vidas) –
está presente em todo o percurso da humanidade, que lhe conferia lugar especial
primando por rituais de passagem capazes de sinalizar todas as pequenas mortes
às quais se sobrevivia corajosamente.Toda a singularidade vai ser deslocada
para o modo como este enfrentamento se dá: alguns fogem da dor desesperançados,
e assim sobrevivem; outros buscam conscientemente o prazer esperançados por
tempos melhores, e assim vivem. De qualquer forma, a vida nos surpreende, quer
sejamos fracos ou fortes. A fraqueza e a fortaleza caminham juntas, ambas nos
despem da antiga identidade patinho-feio e dão à luz (quando menos esperamos)
ao Eu belo-cisne. Quer acreditemos ou não, quer esperemos ou não… Esta é a
ordem natural das coisas, simbolicamente expressa na figura mística da roda da
fortuna: as coisas sempre mudam (quer queríamos ou não). É assim no mundo
redondo de luz e sombras (e não no mundo chato do controle egóico e egoísta da
sempre-luz, deslumbrante e deslumbrada).
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